O discurso do mapa


Entre iluminuras e livros de horas de reis, manuais de alquimia e bíblias raras, uma exposição no Porto mostra o “Atlas de Vaz Dourado”, uma joia da cartografia
 
Os mapas falam. Contam histórias. Constroem narrativas feitas espelho dos tempos. Encenam a ficção de novas realidades. Muitas vezes mentem. Nem sempre por ignorância ou incompetência. Quase sempre por vontade deliberada de compor um discurso novo. Ao gosto de quem encomenda. Ao gosto de quem concebe. Para satisfação de quem os transforma em arma de combate ideológico. Tem sido assim ao longo dos séculos, em tempo de guerra como em tempo de paz. Como foi assim logo nos alvores da cartografia, quando os mapas nasciam de um processo de elaboração mais devedor das regras da iluminura do que da cartografia prática. Um dos exemplos maiores dessa realidade é proporcionado pelo “Atlas Universal de Fernão Vaz Dourado”, um dos tesouros do Arquivo Nacional Torre do Tombo, datado de 1571 e tido como uma das obras mais marcantes da cartografia portuguesa e internacional.
 
Não por acaso, aparece agora inserido numa exposição intitulada “Tesouros bibliográficos (séc. X-XVI): A arte e o génio ao serviço do poder”, patente no Palácio da Bolsa, no Porto, até 1 de maio. Tratase de uma longa viagem pela história proporcionada pela reprodução fac-similada de elevada qualidade de algumas das principais joias da cartografia portuguesa da época dos Descobrimentos e dos manuscritos iluminados mais relevantes do património histórico europeu à guarda de arquivos e bibliotecas como o Metropolitan Museum of Art, a British Library, a Bibliothèque Nationale de France, a Biblioteca Nacional da Rússia, o Arquivo Nacional Torre do Tombo ou o Museu da Fundação Calouste Gulbenkian.
 
Entre as três dezenas de obras incluídas na exposição — e para lá de livros de horas de influentes reis, códices, livros de medicina, bíblias, tratados com segredos de alquimia — estarão quatro obras-primas da cartografia portuguesa e universal: “Atlas Miller” (1519), “Atlas Vallard” (1547), “Atlas Universal de Diogo Homem” (1565) e “Atlas Universal de Fernão Vaz Dourado” (1571), o único que se mantém em Portugal.
 
Essa condição permitiu a reunião de uma multiplicidade de saberes e esforços numa equipa multidisciplinar constituída por investigadores e especialistas de cujo trabalho resultou um conjunto de estudos destinados a acompanhar a edição do “Atlas de Fernão Vaz” numa parceria entre a Torre do Tombo e a editora de Barcelona M. Molero, especializada na reprodução fidedigna deste tipo de obras. Essa colaboração permitiu, assegurou ao Expresso Silvestre Lacerda, diretor do Arquivo Nacional, encontrar os meios necessários à preservação, conservação e restauro das folhas originais, bem como a sua reprodução em fotografia digital de alta resolução.
 
Obra inserida na cartografia de luxo ou de aparato, o “Atlas de Vaz Dourado” explora, como seria de esperar, um ponto de vista nacionalista, no sentido em que, como afirma João Carlos Garcia, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, “este tipo de mapas apresenta sempre uma realidade construída. É como um texto. Coloca-se lá o que se entende ou o que se paga para que lá esteja”. Assim, “estarmos à espera que estejam lá os Descobrimentos, é muito relativo, porque tudo depende das fontes utilizadas pela cartografia para colocar mais ou menos informação, e a quem se destina o mapa. Logo, como com as palavras, há manipulação”.
 
O professor da Faculdade de Letras exemplifica com o livro “How to Lie With Maps” (Como mentir com os mapas), de Mark Monmonier, onde fica claro que os mapas não servem apenas para proporcionar informação, ou para localizar um ponto, mas também para mentir. Como diz Amélia Polónia, da mesma Faculdade e autora de um estudo sobre a possível biografia de Vaz Dourado, “naquele período os globos terrestres produzidos pela Inglaterra trazem toda uma carga de referências” que valorizam o império inglês. “Tudo aquilo é manipulação ideológica”, acrescenta.
 
No caso de Vaz Dourado, prossegue João Carlos Garcia, “tudo isso é muito claro através da iconografia. Há uma espécie de divisão de Tordesilhas, com o lado português cheio de bandeirinhas a assinalar” uma demarcação de território. Essas bandeiras, prossegue, “são como um carimbo. É como quem diz: aqui quem manda somos nós e é, portanto, uma afirmação de posse”. Com a história da cartografia portuguesa sempre ligada ao colonialismo, estes mapas, frisa Amélia Polónia, serviam também para “os portugueses, em diferentes negociações, reclamarem direitos históricos”. Na segunda metade do século XV, Portugal conseguiu algumas importantes vitórias nas instâncias internacionais com a apresentação dos mapas que indicavam precedência.
 
Todavia, o que nos revela este tipo de cartografia não é mais, muitas vezes, do que as viagens ficcionadas pelo rei, pelo bispo, ou por quem tinha o poder económico para as encomendar. “Ninguém fazia uma viagem levando numa caravela uma carta destas”, acentua Garcia. É uma constatação que reforça a importância do acesso aos mapas úteis, aqueles que eram mesmo usados nas caravelas e cujo paradeiro é no essencial desconhecido.
 
Atlas como o de Vaz Dourado eram, antes de mais, reforça Amélia Polónia, “presentes valiosíssimos, com informação manipulada”. Manifestam poder, dão uma visão do império, muito valorizada, não apenas pela dimensão espacial, mas também pela realidade ali projetada.
 
Desde meados do século XIX, o “Atlas de Vaz Dourado”, apresentado como prova da grandeza e originalidade das descobertas geográficas portuguesas do século XV, tem marcado presença constante em grandes acontecimentos nacionais e internacionais. No contexto da exibição do poder e do desenvolvimento das potências coloniais, refere João Carlos Garcia, “o códice testemunhava quanto, aparentemente, a Europa devia à ciência náutica e à cartografia portuguesa, bem como o direito de Portugal a muitos dos territórios representados nessas cartas hidrográficas”.
 
Todos os elementos recolhidos indicam a possibilidade de a obra ter sido elaborada em Goa, em 1571. Poderá ter sido oferecido a D. Francisco da Costa, nomeado capitão de Malaca, onde permaneceu de 1571 a 1574. Autor do “Cancioneiro de Dona Maria Henriques”, sua filha, voltou a Lisboa em 1575 e morreu cativo em Marrocos em 1591, escreve João Carlos Garcia em “A História de Um Códice”. Não se sabe se Vaz Dourado esteve alguma vez em Portugal, como se desconhece de que forma terá o “Atlas” cá chegado. A única certeza é a da sua entrada na Cartuxa de Évora por decisão de D. Teotónio de Bragança (1530-1602), arcebispo daquela diocese, possuidor do códice.
 
Não obstante o cartório do convento ter sido queimado durante a ocupação francesa em 1808, o “Atlas” permaneceu em Évora, onde chega a ser consultado pelo futuro visconde de Sá da Bandeira, então militar naquela localidade. Com a extinção das ordens religiosas em 1834, explica ainda João Carlos Garcia, alguns dos mais importantes tesouros da Cartuxa de Évora, entre eles a obra de Vaz Dourado, terão ido para Lisboa. Com o trabalho de Vaz Dourado e outros, como Diogo Homem, o mundo então conhecido pelos europeus fica cartografado, se nos ativermos ao litoral dos continentes, na verdade o espaço tocado pelos marinheiros nas suas viagens. Sabe-se hoje que nos séculos XV e XVI os cartógrafos portugueses foram pioneiros na apresentação dos espaços descobertos pelos europeus. Sabese que Vaz Dourado, como diz num estudo Maria Fernanda Alegria, do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, “elaborou alguns dos mais belos atlas da cartografia portuguesa quinhentista”, profusamente iluminados e decorados. Porém, quase nada se sabe da biografia do cartógrafo, para lá da imagem que com base em muitas suposições e inúmeras hipóteses foi construída por Armando Cortesão (1891-1997) e tem sido reproduzida, quase sempre acriticamente, desde 1935. “Não se sabe quem era Vaz Dourado e várias gerações de historiadores se debateram sobre esta questão”, diz Amélia Polónia. Terá desempenhado algumas funções de natureza militar ao serviço do estado da Índia. Com alguma verosimilhança poderá ter tido uma oficina com vários colaboradores, sabe-se que esteve na tomada de Diu, mas “não há uma linha cronológica ou genealógica precisa”. Esta espécie de buraco negro informativo tem uma explicação. A história faz registos seletivos. Aos olhos de hoje, é o autor de uma obra muito valorizada. Aos olhos do seu tempo, Fernão Vaz Dourado não passava de um homem comum

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